Não sei quantas vezes escrevi o roteiro de “Reversível”, meu primeiro curta de ficção que está em fase de pré-produção. Perceba que não falo sobre “reescrever”, que pressupõe partir de algo escrito para uma nova versão. Isso, posso garantir, só começou a acontecer lá pra sexta ou sétima vez que escrevi esse roteiro. Vou explicar.
“Reversível” começou a surgir na minha cabeça durante a pandemia de Covid-19. Isolado em casa, ruminando raivas e rancores pela situação que jogaram o Brasil, comecei a vislumbrar a possibilidade de escrever algo de terror que se passasse dentro de um apartamento. “Algo de terror” porque ainda não pensava em escrever um filme. Eu só pensava em escrever.
Nos primeiros roteiros, o protagonista se via às voltas com uma entidade materializada na tela de proteção das janelas. Era algo que realmente me assombrava. Sem sair de casa por meses e meses, percebi que só enxergava o mundo através daquelas telas de proteção. E comecei a me questionar: elas me protegem ou elas me encarceram? Instigante pensamento, eu sei. Cheguei a escrever duas sinopses completas em cima desse mote. Mas devo ser sincero: eram muito ruins.
Foi só quando percebi meu incômodo com a dependência de empregada de onde moro que tudo ganhou outra forma. Eu tinha me mudado para esse apartamento apenas dois meses antes da pandemia começar, e não tinha percebido o quanto eu evitava entrar na dependência de empregada. Era a primeira vez que eu morava em um lugar que tinha esse cômodo, e o desagravo me surgiu de maneira insuspeita.
Comecei a me questionar quantas coisas aconteceram dentro daquele cômodo, uma vez que o apartamento data da década de 1970. Quantas lágrimas, e quantos sonhos, e quantos rancores estariam assentados sob o reboco daquelas paredes? Passei dias imaginando quem seriam os moradores do apartamento, e como eles enxergariam o Brasil de 2022, e quais mesquinhezes e crueldades cometeram com as ocupantes da diminuta dependência de empregada.
Dei-me conta, então, que a história mais importante não estava fora da dependência, estava dentro. Nas paredes, nas camadas de pintura, nos rejuntes do minúsculo banheiro. A principal história era das ocupantes daquele cômodo.
Minha mãe foi empregada doméstica quando se mudou de Areia Branca, interior do Rio Grande do Norte, para a capital. Lá pro início da década de 1960, ela chegou a Natal carregando dois filhos pequenos e uma mãe idosa. Natal era então uma cidade com pouco mais de 160 mil habitantes, dominada pela presença militar por ser sede do 3º Distrito Naval.
A Ditadura Militar, e seus ideais de aniquilação da negritude e branqueamento forçado, dava seus primeiros passos quando minha mãe, diante da fome e da falta de perspectivas, começou a trabalhar como empregada doméstica. Não posso nem imaginar o filme de terror que ela viveu.
As coisas tinham mudado desde então. Eu me formei, tenho um emprego bacana, vivo confortavelmente. Mas de alguma maneira, esse passado ainda me assombrava. Olhar a dependência de empregada do meu apartamento me levava a imaginar o confinamento nas senzalas das fazendas do Brasil Colonial; e os porões sob os casarões das cidades, que serviam de moradia aos escravizados urbanos; e os barracões apinhados que se tornam residência dos que estão em situação análoga à escravidão.
Mas eu não podia deixar esse passado me assombrar a ponto de invadir minha casa, não é mesmo? Eu tinha que fazer algo. Foi daí que veio o estalo para “Reversível”: e se um homem negro percebesse que a dependência de empregada da sua casa está assombrada? E se esses ecos do passado se materializassem numa assombração? E se o perigo do confinamento forçado fosse imposto no Brasil de 2022?
Como toda boa história de fantasma, o clímax é sempre a cura do trauma. Em “O Chamado”, por exemplo, Samara é um monstro que assombra na angústia de não poder se libertar. Essa mesma lógica se repete em dezenas de filmes de terror. A assombração precisa se libertar da maldição que a transforma em assombração, e só assim o terror cessa.
Mas será que é possível libertar a negritude do passado de dor? Será que é possível ressignificar tudo que nos fizeram? Será que é possível reverter o passado?
Quando finalmente escrevi o roteiro de “Reversível”, não tive dúvidas que teria de iniciá-lo com um ditado iorubá que sempre me intrigou: ”Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que atirou hoje”. A impossibilidade física de repetir a façanha de Exu é o grande desafio do protagonista de “Reversível”.
É o passado que assombra a dependência de empregada do filme. Mas que homem comum tem o poder de atirar uma pedra em direção ao ontem?
Do primeiro roteiro de “Reversível” até agora, foram cinco tratamentos. Estes sim, um puro exercício de reescrita. Melhorando diálogos, afinando o ritmo, evoluindo a narrativa, adequando o projeto ao orçamento. Depois de muita reescrita, cheguei na etapa que chamo de lapidação. Pressupõe que já tenho uma gema preciosa nas mãos, mas agora preciso cuidar com minúcia de suas arestas.
Às vezes estou no meio do banho, e uma frase melhor me surge. Corro para escrever. Já me peguei falando sozinho na hora de dormir, emulando diálogos. Um dia desses estava diante do espelho, sem nem pensar, fingindo que eu era um dos personagens em seu monólogo. A coisa toda tem jeito e cheiro e gosto de loucura, eu sei. E é justamente essa a melhor parte.
Até o dia da gravação (e depois, e além), estarei lapidando esse roteiro, ronomeando como “roteiro final final final (ad aeternum)”. Desconfio que nunca estará pronto, ainda que eu rode e edite e lance o filme. Tenho essa certeza absurda de que não sei quantas vezes vou escrever “Reversível”.