Como é ser negro no mercado de trabalho — e outras coisas que não fazem o menor sentido perguntar

Desde a comoção global com o assassinato de George Floyd, e a subsequente busca por conscientização racial no mundo corporativo, essa é a pergunta que mais ouço quando participo de mesas redondas, palestras e bate-papos: como é ser negro no mercado de trabalho? Nada contra a pergunta em si, mas sim ao bojo de verdades incômodas que ela carrega. A principal delas é: eu tenho mais de vinte anos de carreira e só agora estão me perguntando isso.

Preciso dizer o óbvio. Nós, pessoas negras, não surgimos no mercado de trabalho a partir do momento em que quadradinhos pretos foram postados no Instagram. Nós já estamos no mercado de trabalho há muito tempo. Arrisco a dizer, há mais tempo que os ditos brancos.

A primeira enxada a se cravar no solo brasileiro foi erguida por mãos negras. Nós trouxemos nossas tecnologias agrícolas quando nos sequestraram em África, e estudamos o clima com a ajuda dos povos originários, e viabilizamos uma economia pujante quando plantamos e colhemos o café, a cana-de-açúcar, o tabaco e o algodão que sustentaram esse país por séculos. Se há uma elite econômica no Brasil, e um mercado de trabalho, é graças à exploração criminosa do nosso labor.

Nós, que lutamos pela liberdade, também lutamos por direitos trabalhistas — aliás, nós que conquistamos a liberdade também conquistamos direitos trabalhistas. Nós, que trabalhamos de sol a sol para que esse pedaço de terra demarcado pelo Tratado de Tordesilhas virasse o que hoje chamamos de país, seguimos trabalhando para que as engrenagens dessa imensa máquina continuem girando. Nós somos cerca de 55% da massa trabalhadora do país, segundo dados de 2022 do IBGE. E se pudéssemos contabilizar os que estão na informalidade, essa porcentagem seria ainda em maior.

Ao que me consta, afeito que sou aos livros de História, enquanto erguíamos essa nação com a força do nosso trabalho, os ditos brancos se dedicavam a bailes, jantares e convescotes. Essa nação não produziria nem pibinho, quanto mais pibão, sem o nosso suor. Aí agora vêm perguntar pra gente como é ser negro no mercado de trabalho?!

Nós, pessoas negras, não surgimos no mercado de trabalho a partir do momento em que quadradinhos pretos foram postados no Instagram.

Fiz questão de relembrar esses detalhes históricos porque é mandatório recorrer à História quando se pretende falar de mercado de trabalho no Brasil. As relações trabalhistas no nosso país foram forjadas durante séculos de um cruel regime escravocrata, em que nossa economia se baseou majoritariamente no trabalho forçado de pessoas negras. Não sei se vocês sabem, mas os últimos 500 anos têm sido duros para nós.

Oficialmente, a escravidão durou 388 anos no Brasil — e é preciso lembrar: nenhum outro país passou tanto tempo sob um regime escravocrata, e nenhum demorou tanto para aboli-lo. Foram quase quatro séculos em que nós fomos forçados a trabalhar de domingo a domingo — sem remuneração, vivendo em condições desumanas, subnutridos de propósito para evitar levantes, e com o bônus de sermos tratados como mercadoria numa sociedade que se formava muito mais atenta aos direitos das empresas do que aos direitos humanos.

Para efeito de comparação, a Consolidação das Leis do Trabalho (que estabeleceu, dentre outras coisas, a jornada remunerada de oito horas) tem míseros 81 anos. Isso significa dizer que gestores brasileiros passaram cinco vezes mais tempo usando açoite e pelourinho do que timesheet e coaching.

O impacto que isso gerou nas relações de trabalho é imensurável. É daí que vem, dentre outras coisas, essa falsa falha cognitiva que faz os ditos brancos fingirem que nós chegamos ao mercado de trabalho só depois do Black Lives Matter. Não quero soar agressivo, mas é impossível não apontar o cinismo.

Nos últimos anos, a gente viu crescer as discussões sobre diversidade e inclusão no mercado de trabalho. Grupos de afinidade foram criados, políticas de ESG foram patrocinadas, ações de PR foram montadas para que membros do C-level posassem ao lado dos seus tokens. E um terrível mal-estar se ferventou entre os ditos brancos, muitos se sentindo usurpados de seus direitos individuais quando se viram forçados a tratar pessoas negras como iguais. Foi como se de uma hora pra outra, feito um arrebatamento ao avesso, negros se materializassem nos ambientes corporativos e forçassem os ditos brancos a tratá-los como seres humanos. Tudo súbito e abrupto, só que não.

Foram séculos de resistência e enfrentamento por parte do povo negro que produziram na sociedade brasileira a certeza moral de que nós, negros, somos seres humanos, e portanto devemos gozar de todos os direitos reservados aos humanos. Notadamente, dignidade, respeito e cidadania. Se você parar pra pensar por cinco segundos, não é tão difícil de compreender. Talvez essa seja a principal razão pela qual a pergunta do título me ferve a cachola. Vocês não sabem mesmo como é ser negro no mercado de trabalho? Sério?!

Foram séculos de resistência e enfrentamento por parte do povo negro que produziram na sociedade brasileira a certeza moral de que nós, negros, somos seres humanos, e portanto devemos gozar de todos os direitos reservados aos humanos.

Bem, já que insistem na pergunta, vou responder.

Ser negro no mercado de trabalho é assistir às políticas de inclusão e diversidade minguarem, tendo em vista que cada vez mais empresas não vêem mais relevância em reparar o que empresas fizeram no Brasil por quatro séculos.

Ser negro no mercado de trabalho é assistir aos ditos brancos voltarem a se incomodar quando a gente diz que é negro, provavelmente porque sentem saudade da época em que era proibido declarar isso nos ambientes corporativos.

Ser negro no mercado de trabalho é sussurrar toda vez que a gente fala sobre racismo, por cautela ou por autoproteção, porque a gente nunca sabe quando uma afirmação nossa será usada contra nós no RH.

Ser negro no mercado de trabalho é não ter lideranças negras para se espelhar, e quando temos, que às vezes acontece, é só uma mesmo, só pra aparecer na foto.

Ser negro no mercado de trabalho é ter que provar nosso talento, nossas habilidades e nossa maturidade profissional para todos que trabalham com a gente, todos mesmo, independente do nível hierárquico — e o tempo inteiro, a todo momento.

Ser negro no mercado de trabalho é controlar o tom de voz e jamais ser enfático, porque a paixão pelo que fazemos pode rapidamente ser taxada como comportamento agressivo.

Ser negro no mercado de trabalho é ver colegas ditos brancos ganhando mais que nós, e viajando ao exterior, e adquirindo casa própria, e pavimentando um futuro promissor, enquanto nós seguimos voltando ao estágio zero a cada passaralho.

Ser negro no mercado de trabalho é fazer terapia para tratar o rancor e aprender a transformar a revolta em combustível.

Ser negro no mercado de trabalho não é muito diferente de ser negro em outros ambientes. A principal diferença é que no mercado de trabalho estão o tempo inteiro lembrando a nós que devemos agradecer por estarmos ali, ainda que eu já tenha provado que estamos ali há muito mais tempo que eles.

Ser negro no mercado de trabalho é mentir ao responder essa pergunta, porque não podemos correr o risco de falar a verdade a quem não quer ouvi-la.

Tendo em vista que os verdadeiros newbies do mercado de trabalho são os ditos brancos, parece lógico reformular a questão do título. Assim, lanço a pergunta: como é ser branco no mercado de trabalho?

Como é ganhar mais que nós, independente do currículo e da produtividade? Como é fazer parte da parcela da população que tem os melhores empregos, os melhores salários e as melhores perspectivas de futuro? Como é estar sempre no topo da fila da promoção? Como é contar com a conivência para com seus erros no trabalho enquanto nós, negros, contamos com a exigência inflexível?

Não pense que estou inventando tudo isso, tá? Em matéria do Valor Econômico de dezembro de 2023, temos muitos dados para embasar o que estou falando. “As pessoas pretas e pardas recebem menos rendimentos que as brancas em todos os níveis de instrução”, informam as jornalistas Paula Martini e Lucianne Carneiro, “e representam a maioria empregada em atividades com mais informalidade e menor rendimento médio, como agropecuária, serviços domésticos e construção civil”. Segundo essa mesma matéria, o rendimento-hora médio dos trabalhadores brancos em 2022 foi 61,4% maior que o de pessoas negras.

Diante da realidade, essa que se impõe ainda que tentemos fingir não vê-la, me responde: como é ser branco no mercado de trabalho? Eu realmente a-do-ra-ria saber.

Categorias: Textão

8 comentários em “Como é ser negro no mercado de trabalho — e outras coisas que não fazem o menor sentido perguntar”

      1. Amigo, se te responderem como é ser branco no mercado de trabalho, me diz. Se a pessoa sobreviver a essa pergunta, claro. Te amo.

  1. Edna Ferreira

    Texto perfeito, como tudo o que se propõe a fazer…muita verdade exposta para quem quiser saber. Parabéns! É s um Gigante Patricio Jr.

  2. Ana Aguiar

    Caralh*, chorei. Também me ferve a cachola ver essas coisas acontecerem, ouvir esse tipo de pergunta. O tanto de ameaças e discursos violentos disfarçados de “Feedback” que tive que ouvir E ENGOLIR. Seco, né? Pq é difícil de descer, mas desce, pq muitas vezes nao tem espaço pra outra coisa. É aprender “jogar o jogo” (da branquitude, lógico) como já ouvi carinhosamente de alguém com um cargo muito importante. Enfim, obrigada por hablar por uma multidão engasgada.

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