Por que falar tudo em inglês é ruim para a publicidade

Publicitário NÃO adora falar palavras em inglês. Publicitário TEM que falar palavras em inglês. É a língua dos negócios. Não tem como chamar verba de verba se todos os clientes, todo o mercado, todos os veículos, todos os fornecedores, todas as redes sociais, em todo o mundo inclusive, chamam de budget.

Não estou aqui para ser juiz, nem testemunha de defesa, muito menos réu. Certo ou errado, bonito ou feio, producente ou não, é assim que as coisas são na Publicidade. Não pretendo defender nem condenar. A língua é viva. Todos podem transformá-la. Que viva, então! Ou você é do tipo que fica reclamando de publicitários que usam expressões em inglês enquanto vê posts com selfies que estão hitando numa trendy? Não, né?

Nós, publicitários, não estamos apenas usando termos em inglês. Afirmar isso seria reducionista. A gente está tentando inventar um novo idioma. Um dialeto que a cada call se torna mais impenetrável. A gente não diz budget (com inglês perfeito, pronúncia afiada, entonação correta). A gente diz bâgeti. A gente chama call de cóu. A gente chama background de bequi-gráunde. Feedback virou fidibéqui. E não para por aí. Tem jóbi, brífim, chér, brêin-estórmi, influênceris, riquépi, gáidi, dígitau, fláiti, ôpeim-tevê, inváiti, mobáiu, ishtrímim, bigaidía. A gente fala bucar no sentido de reservar um lugar; estartar em vez de “começar”. Pelo amor de Daisy, a gente chama “burilar” de craftar! A gente não tem límitis!

A gente não diz budget (com inglês perfeito, pronúncia afiada, entonação correta). A gente diz bâgeti.

Usar tantos termos em inglês é ruim sim. Ninguém gosta. A gente usa porque, enfim, é o jeito. O capitalismo é todo em inglês. E o principal motivo de ser desagradável nem é o rêiti. Isso é o de menos. O real motivo de ser ruim é que a gente não tá criando um idioma. A gente está criando uma realidade fictícia. E estamos tomando decisões que impactam o mundo real com base nas regras dessa Nárnia que a gente inventou.

Foquemos na palavra target, que a gente fala tárgueti. Significa público-alvo, ainda que nesse mundo ultrafragmentado, em que hábitos de consumo são altamente aferíveis, a gente tenha descoberto que não tem mais alvo. Só público. Que, não por acaso, é um possível sinônimo de “pessoas”. Quando insistimos em chamar o público de tárgueti, a gente despersonaliza tudo. A gente tira as pessoas da equação e deixa só o alvo.

Homens negros entre 35 e 45 anos da classe B podem estar ouvindo Megadeth, Mozart ou Mariah Carey. Podem gostar de calça jeans ou de saias plissadas – ou de ambos. Podem seguir milhões de influenciadores ou nem ter redes sociais. Hoje em dia não tem mais desculpa para fingir que a gente não sabe disso. Um desodorante masculino ultra-seco pode ser o preferido da minha mãe. Pessoas são assim. O público é assim.

Ao chamar esse vasto universo de múltiplos comportamentos de tárgueti, a gente se distancia das pessoas. A gente foca nos números. A gente fala sobre impressões, engajamento, cliques, mas nunca sobre gatilhos, comoções, aspirações. A gente pega esse mundo de faz-de-conta e interpola ao mundo real, fingindo que lá embaixo, na calçada, as pessoas se comportam como tárgueti.

E aí a gente olha para um cartaz que tem escrito Black Lives Matter e pensa em Cannes.

Ao chamar esse vasto universo de múltiplos comportamento de tárgueti, a gente se distancia das pessoas.

Tem outra profissão que também importa muitas palavras, e não se furta de abrasileirar todas. A gastronomia. Mas em vez de carregar nos anglicismos, chefs e suas equipes são mais elegantes. Eles bebem no francês. E tome galicismo pra lá, galicismo pra cá. É um tal de bechamel, crouton, deglacê, temperagem, fuet, sabrage. Mas tem um detalhe que faz toda a diferença nas carreiras culinárias. Eles estudam uma disciplina obrigatória em todos os cursos de gastronomia que se chama comensalidade.

Essa vem do latim, vejam vocês. É a junção de “com” (que significa “junto”) e “mensa” (que significa “mesa” ou “refeição”). Comensalidade, portanto, é a prática de compartilhar refeições com outras pessoas. Alunos de gastronomia aprendem como tornar essa prática o mais agradável possível aos seus clientes, retirando o aspecto frio das fichas técnicas culinárias para colocar o fazer gastronômico no âmbito humano. Cozinha-se para pessoas. Elas são mais importantes que qualquer técnica.

O estudo da comensalidade faz com que não se perca o mais importante de vista. E o mais importante de qualquer fazer é para quem se faz. Para as pessoas. É para emocioná-las, diverti-las, relaxá-las, surpreendê-las. É para elas, e só para elas, que fazemos.

Não estou aqui dizendo que a publicidade é isso ou aquilo, que publicitários são bons ou maus, que o jeito certo de fazer publicidade é esse ou aquele. Longe de mim tal empáfia. O que estou dizendo é que só atingimos o alvo quando a análise se equilibra com a criatividade. Quando o número tem tanto peso quanto a palavra. Quando o processador trabalha ao lado do cérebro. E esse equilíbrio é fino, instável, quase impossível. É a nossa partícula de Higgins. Por isso mesmo tem que ser a meta. Sempre.

Publicidade é o ato de tornar público. E não há público sem pessoas. Dídiu guéreti?

Categorias: Textão

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